Por Cristiano Rosa de Carvalho
Com a eleição do novo governo federal e a criação de uma Secretaria de Reforma Tributária, encabeçada por Bernardo Appy, igualmente autor (por meio do CCiF, Centro de Cidadania Fiscal) de um dos projetos que tramita no Congresso (PEC 45), o tema voltou a baila. Atualmente, há dois Projetos de Emenda Constitucional para a reforma, a PEC 45 e a PEC 110, com convergências e divergências entre si.
Os desafios para aprovação de qualquer um dos projetos é considerável, pois requerem a unificação e/ou extinção de diversos tributos (PIS e Cofins, ICMS, ISS e IPI, e no caso da 110, Cide combustíveis e CSLL) na figura do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), análoga ao IVA (imposto sobre valor agregado), utilizado por diversos países. Outra diferença entre as PECs 45 e 110, é que a primeira cria o IBS único, em nível nacional, enquanto a última é dual, ou seja, institui um IBS federal e um IBS estadual/municipal. Além disso, a PEC 45 prevê uma alíquota única (25%), além de extinguir benefícios fiscais, enquanto a PEC 110 permite algumas alíquotas diferenciadas, além de manter benefícios por um período de até 12 anos. O maior desafio é, certamente, o da PEC 45, pois unifica nacionalmente o IBS, concentrando poderes em uma agência nacional, e com diversas limitações a autonomia dos entes federativos.
Problemas já surgem de pronto, no que se refere à coordenação necessária para alinhar incentivos de todos os entes federativos envolvidos. A Teoria dos Jogos nos ensina que ocorre o famoso “dilema do prisioneiro”, quando os incentivos na interação estratégica levam à não-cooperação entre os agentes.
Por mais que várias das ideias do projeto sejam positivas e possam gerar um sistema tributário mais racional, há certamente perda de arrecadação tanto para alguns Estados (os que produzem bens e mercadorias, já que a tributação incide no destino), como para os Municípios, que estimam perdas de bilhões com provável “quebra-quebra” no setor de serviços, por conta do brutal aumento de carga, além da perda de autonomia. Além disso, o fim dos benefícios fiscais proposto pela PEC 45, não obstante seja positivo do ponto de vista de teoria econômica (pois benefícios sempre geram “peso-morto”, ou seja, ineficiência alocativa, acabam com a neutralidade fiscal e incentivam formação de grupos de interesse etc.), a Teoria da Escolha Pública (intersecção da Ciência Econômica com a Ciência Política) nos ensina que o verdadeiro poder político não é o de tributar, mas sim o de conceder benefícios fiscais. Costuma-se dizer que políticos criam dificuldades, por meio da instituição de tributos, para poder vender facilidades, através de benefícios fiscais. Nisso se encontra também outro problema que as PECs buscam eliminar, que é a tributação setorial, responsável justamente por criar grupos de interesse ligados aos diversos setores da economia, que por sua vez, buscam benefícios para si, o que também incentiva o setor político a organizar e operar dessa forma. Perder o poder de conceder benefícios, portanto, não é incentivo que leve a cooperação para aprovar reforma. Cabe lembrar que além da União Federal, do Distrito Federal e dos 26 Estados, existem cerca de 5.600 municípios, que não obstante não participarem formalmente do congresso nacional, exercem enorme influência política sobre ele.
Do ponto de vista dos contribuintes, preocupa o deslocamento de carga do setor industrial e comercial para o setor de serviços, especialmente pela PEC 45, que pretende ser neutra (não aumentar carga). Ocorre que a tributação sobre os serviços, responsável por mais de 70% da Economia (e consequente geração de empregos) poderá ter sua carga quintuplicada, sendo que a capacidade de tomar créditos é limitada pela sua própria natureza, vez que são poucos os insumos nesse setor, comparativamente à indústria e comércio. O equilíbrio da carga, segundo Appy, se daria pelo posterior ajuste de preços relativos, ou seja, se bens e mercadorias ficam mais baratos, haveria uma compensação para o setor de serviços, que consome esses bens. Sabe-se, todavia, que há inúmeras variáveis envolvidas na formação de preços, e nada garante que esse ajuste ocorra, ou ocorra de modo suficiente.
Todavia, há outro ponto ainda mais preocupante. A alteração radical do sistema atual para um regido por um imposto sobre valor agregado (típico de países europeus) sequer foi devidamente simulada, muito menos testada por aqui. Em países como os EUA, qualquer proposição de política pública é extensamente e intensamente simulada (com uso de A.I.), porém poderíamos ter ido ainda além, por meio de um “sandbox” para a reforma tributária, como propusemos, em 2020, em artigo publicado em jornal de grande circulação nacional. Neste “sandbox”, poder-se-ia escolher um setor da economia com cadeia complexa (mercadorias e serviços) como, por exemplo, o da construção civil, isolá-lo em determina área e aplicar o IBS, de modo a verificar empiricamente o seu funcionamento, assim como as externalidades resultantes. Infelizmente, nenhuma iniciativa nesse sentido foi tomada, e, até onde sabemos, nem sequer simulações robustas foram rodadas. Em outras palavras, poderemos entrar em um sistema novo totalmente diferente, de olhos vendados, o que pode acarretar um desastre de proporções épicas. Ainda que haja regime de transição para a migração de um sistema para outro, esta mesma transição gerará inúmeros custos de transação adicionados aos já existentes. Por outro lado, certamente a criatividade dos tributaristas será usada para aproveitar brechas entre os sistemas coexistentes, para fins de planejamento tributário.
Uma alternativa pouco discutida seria a adoção do sales tax, no modelo norte-americano, muito mais simples, e incidente apenas na última operação, a da venda para o consumidor. Cabe também dizer que o próprio IVA europeu já se encontra velho face à economia digital, e simplesmente importa-lo para o Brasil pode nos confirmar, mais uma vez, como um museu de grandes novidades.
Por fim, além da reforma da tributação sobre o consumo, o Ministro Haddad pretende, na sequência de aprovação da PEC no congresso, reformar a tributação sobre a renda, com provável aumento de carga, especialmente na revogação da tributação sobre dividendos e instituição de alíquotas progressivas sobre rendas maiores. Escrevi, há mais de uma década (Teoria da Decisão Tributária, Saraiva, 2013, 2ª edição, Almedina, 2018), que dificilmente uma reforma tributária nesses moldes seria aprovada, pelos obstáculos cooperativos acima referidos, sendo que esta previsão, embora pessimista por um lado, até hoje se mantém. Os obstáculos permanecem, talvez até majorados, o que mantém a improbabilidade de aprovação da reforma neste ano, ou, na melhor das hipóteses, aprovada substancialmente distinta de seu projeto original. A tragédia pode se dar tanto com sua aprovação, como com a sua não-aprovação e manutenção do péssimo sistema atual, sendo que o trade-off encontra-se entre uma mudança rumo ao desconhecido não-testado ou a permanência com o diabo longamente experimentado. A ver.