A reacção jurídica portuguesa à pandemia do COVID-19 - Parte 1 - CMT Adv - Carvalho, Machado e Timm Advogados
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A reacção jurídica portuguesa à pandemia do COVID-19 – Parte 1

 

Com o propósito de compartilhar a reação jurídica portuguesa à pandemia do COVID-19, o advogado Fernando Araújo, que recentemente passou a integrar o quadro de sócios do CMT, preparou uma análise sobre diferentes aspectos do tema.

O conteúdo elaborado por Fernando Araújo, Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, será publicado a partir de hoje, em uma série especial. Confira abaixo a primeira parte, que traz a introdução e a abordagem sobre 4 temas: contratos públicos, saúde, serviços essenciais e eventos públicos.

 

Por Fernando Araújo

 

INTRODUÇÃO

Em reacção à pandemia do COVID-19 / SARS-Cov2, considerada como uma calamidade pública, foi decretado em Portugal o Estado de Emergência no dia 18 de Março de 2020 (Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18 de Março); esse Estado de Emergência foi prorrogado em 2 de Abril (Decreto do Presidente da República nº 17-A/2020, de 2 de Abril), e prevê-se que venha a ser renovado novamente.

Nesse contexto tem sido publicada abundante legislação, compilada e actualizada num site oficial (https://dre.pt/legislacao-covid-19-por-areas-tematicas).

A situação é de evolução rápida e imprevisível, com impactos severos e muito amplos, reclamando respostas constantes – e isso tem determinado modificações quase-diárias do quadro jurídico, que vão de detalhes até medidas de fundo, todas apresentadas como temporárias, mas muitas com vocação para se perpetuarem para lá do regime do Estado de Emergência.

O regime do Estado de Emergência é composto, por um lado, por implicações directas que resultam do seu enquadramento constitucional e legal pré-crise (art. 19º da Constituição da República Portuguesa [CRP]; Lei nº 44/86, de 30 de Setembro, Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência [RESEM]); e, por outro lado, por especificidades contidas nos diplomas publicados imediatamente antes da declaração do Estado de Emergência ou já na pendência desse regime (destacando-se o Decreto nº 2-B/2020, de 2 de Abril, que regulamenta a prorrogação do Estado de Emergência decretado pelo Presidente da República, e a Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março e o Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, que ambos [sucessivamente alterados] aprovam medidas gerais relativas à situação epidemiológica provocada pela pandemia).

Em traços gerais, o regime do estado de Emergência pode caracterizar-se por:

a) Restrições à liberdade, traduzidas, entre outras, no confinamento obrigatório dos atingidos pela pandemia, no dever de protecção dos grupos de risco, no dever geral de recolhimento domiciliário, no encerramento de serviços públicos e de estabelecimentos comerciais não-essenciais, na proibição de eventos colectivos, na possibilidade de requisição civil de bens e serviços – sendo as excepções tipificadas na lei, e revelando-se menos numerosas para os grupos de risco do que para a população em geral.

b) Restrições mais fortes à liberdade de circulação de pessoas no período da Páscoa (9 a 13 de Abril).

c) Estabelecimento de prioridades de acesso ao comércio não-suspenso.

d) Favorecimento do comércio minimizador do contacto pessoal (take-away, delivery ou distribuição ao domicílio, comércio electrónico, prestação de serviços em teletrabalho).

e) Salvaguarda dos contratos de arrendamento não-habitacional por ocasião de encerramento de estabelecimentos ou instalações.

f) Suspensão dos prazos de validade dos actos administrativos.

g) Reforço da inspecção das condições de trabalho, e proibição de despedimentos no seio do Serviço Nacional de Saúde.

h) Limitação do direito à greve e à participação das entidades patronais e sindicais na elaboração de legislação laboral.

i) Limitação pragmática da liberdade de aprender e ensinar.

j) Restrições do direito à protecção de dados pessoais

As restrições, prioridades e moratórias genericamente enumeradas deverão sempre respeitar os princípios da igualdade e da não-discriminação, e obedecer aos limites estabelecidos na Lei (art. 2.º/2 do RESEM).

Em nenhum caso a declaração do Estado de Emergência poderá afectar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, nem interferir com a não-retroactividade da lei criminal, com o direito de defesa dos arguidos e com a liberdade de consciência e de religião (arts. 19º,6 da CRP e 2º,1 do RESEM). E os cidadãos mantêm ainda, e na sua plenitude, o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, liberdades e garantias, lesados ou ameaçados de lesão por quaisquer providências inconstitucionais ou ilegais (art. 6º do RESEM).

 

TEMAS DE ANÁLISE

Cabe analisar os impactos da situação de pandemia no quadro jurídico português, o que faremos seleccionando alguns dos problemas mais relevantes e agrupando-os por temas. A análise, dada a amplitude dos temas, das implicações, do próprio ritmo diário de modificação do quadro jurídico, tem que ser necessariamente muito sintética e limitada a algumas notas.

Agruparemos assim os temas de análise:

1. Contratos Públicos

2. Saúde

3. Serviços Essenciais

4. Eventos Públicos

5. Auxílios de Estado

6. Concorrência

7. Seguros

8. Mercado de Capitais

9. Empresas

10. Fiscal

11. Laboral

12. Protecção de Dados Pessoais e Cibersegurança

13. Arrendamento

14. Imobiliário

15. Processo

16. Penal

 

1. CONTRATOS PÚBLICOS

A) Quanto à fase pré-contratual

Quanto aos procedimentos pré-contratuais e às acções de contencioso pré-contratual previstos no CPTA, os prazos não se suspendem (sejam eles urgentes ou não), não obstante ter havido uma dúvida que a lei supervenientemente esclareceu. Com a entrada em vigor da Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril, que introduz modificações tanto ao Decreto‑Lei n.º 10-A/2020 como à Lei n.º 1-A/2020, deixa de haver efeitos suspensivos automáticos nessa área (art. 7º-A da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, aditado pela Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril) – sem embargo de poderem subsistir dúvidas quanto à exequibilidade perfeita dessa não-suspensão nas actuais circunstâncias, podendo introduzir-se disparidades entre interessados, em função da sua capacidade para lidarem com as novas circunstâncias excepcionais, e em função da presença, ou não, de obstáculos práticos à aplicação perfeita do regime – não devendo perder-se de vista as condições especiais em que funcionam os serviços públicos e os próprios tribunais. Em todo o caso, percebe-se que tenha prevalecido a opção de não-suspensão de prazos, dados os objectivos de celeridade na aquisição de bens e serviços ditados pelas circunstâncias excepcionais, conjugados embora com a necessidade de evitar todas as deslocações desnecessárias e todas as diligências presenciais que não sejam absolutamente essenciais.

B) Quanto à celebração de contratos públicos

Foi estabelecido um regime excepcional de contratação pública, de autorização de despesa e de autorização administrativa, ditado pela urgência das circunstâncias e pela inconveniência temporária de, enquanto durar o presente quadro de alerta, se adoptarem todos os procedimentos previstos no Código dos Contratos Públicos.

Isto sem embargo de ter que se manter a compatibilização da celeridade procedimental com a boa gestão de recursos públicos – mormente prevendo-se uma maior amplitude na escolha do procedimento de ajuste directo (ou até de ajuste directo simplificado, na medida do estritamente necessário) em detrimento de procedimentos concursais e de consulta prévia nas empreitadas de obras públicas e na locação ou aquisição de bens e na aquisição de serviços. Por outras palavras, todas as simplificações foram previstas sem prejuízo da proeminência dos valores da publicidade e da transparência, a serem assegurados pela publicitação e fiscalização posteriores.

No mesmo sentido, foram estabelecidos novos valores máximos admissíveis, e imprimida maior celeridade ao procedimento administrativo, removendo-se constrangimentos temporais – como a preferência pela consulta prévia – para as aquisições repetidas e para a aquisição descentralizada de bens e serviços, em especial no sector da saúde.

Permitiu-se ainda, com maior amplitude, os adiantamentos por conta do preço e os pagamentos antes do visto do Tribunal de Contas (sem prejuízo da fiscalização concomitante ou subsequente) ou da declaração de conformidade, de novo com o objectivo de celeridade, e de máxima produção de efeitos logo no momento da adjudicação.

No regime excepcional de autorização de despesa pública, alargou-se o domínio do deferimento tácito dos pedidos de autorização e de descativação de verbas, de despesas plurianuais, de alterações orçamentais.

Estabeleceu-se, por outro lado, que as entidades adjudicantes poderão determinar a prorrogação dos prazos para entrega de candidaturas ou propostas, permitindo aos interessados elaborá-las atempadamente e com conhecimento pleno das condições do contexto.

C) Quanto à estabilidade de contratos públicos em vigor

No presente contexto, é de prever a invocação de força maior quanto a incumprimentos, mormente de prazos, e a invocação da alteração das circunstâncias para modificação do contrato e para reposição do equilíbrio financeiro.

Note-se que esta possibilidade deverá ser casuisticamente avaliada e fundamentada, de acordo com o concreto circunstancialismo subjacente ao procedimento pré-contratual e à luz dos requisitos legais aplicáveis à alteração de circunstâncias. A excepcionalidade consagrada na lei equivale à justificação de urgência imperiosa, que norteava já, antes da declaração do Estado de Emergência, a reacção a acontecimentos imprevisíveis.

Admite-se que possa haver lugar à reposição do equilíbrio financeiro do contrato, com fundamento na alteração das circunstâncias, desde que a situação altere os pressupostos nos quais o co-contratante determinou o valor das prestações a que se obrigou, e que o contraente público conheça, ou não deva ignorar, esses pressupostos – sendo que uma tal reposição poderá, dependendo dos concretos contornos do caso, operar por via da prorrogação do prazo de execução das prestações ou da vigência do contrato, ou da revisão dos preços, entre outros.

O co-contratante poderá, ainda, tentar resolver o contrato, com fundamento na alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, desde que a resolução não implique grave prejuízo para a realização do interesse público no caso concreto, ou, ainda que implique grave prejuízo, quando a manutenção do contrato coloque manifestamente em causa a viabilidade econômico-financeira do co-contratante, ou se revele excessivamente onerosa para o mesmo.

 

2. SAÚDE

Em situação de emergência de saúde pública, o membro do Governo responsável pela área da saúde pode, nos termos da Lei de Bases da Saúde, tomar as medidas de excepção que se revelem indispensáveis.

Sobre a actividade farmacêutica, a Ministra da Saúde dispõe de poder para decretar medidas excepcionais para garantir o fornecimento de bens e serviços, para requisitar temporariamente estabelecimentos e instalações, para requisitar temporariamente bens e serviços e para impor prestações obrigatórias. Nesse contexto, foi constituída uma Reserva Estratégica de Medicamentos de âmbito nacional, com medicamentos, dispositivos médicos e equipamentos de protecção destinados ao combate à pandemia e ao tratamento das comorbilidades que interferem no tratamento.

O INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, emitiu orientações para gestão dos medicamentos e dispositivos médicos nas farmácias, nos fabricantes e nos distribuidores, por forma a promover a continuidade da oferta de medicamentos, a sua disponibilidade rápida e o seu não-esgotamento (com reforçadas notificações de ruptura), com incremento do fornecimento de material de prevenção e protecção, e a definição de alternativas terapêuticas por substância activa, a serem dispensadas por substituição e a título excepcional.

Já no Estado de Emergência, foram prorrogados prazos de escoamento de medicamentos não-genéricos no seio da Revisão Anual de Preços de 2020; foi admitida a dispensa de medicamentos sujeitos a receita médica a doentes crónicos que não apresentem a receita médica; reforçou-se a prevenção e repressão contra falsificações e circuitos paralelos, mormente no comércio internacional; admitiu-se temporariamente a dispensa de medicação exclusivamente hospitalar através das farmácias comuns.

E, no que respeita à actividade das farmácias, foram emitidas orientações para minimizar o risco de contaminação no atendimento ao público, foram previstas a criação de uma zona de isolamento, a elaboração de um plano de contingência, a designação de um coordenador de todas as actividades excepcionais requeridas, etc..

O INFARMED decidiu ainda conceder prioridade à avaliação dos ensaios clínicos que visem a prevenção ou tratamento da pandemia; e quanto aos demais, veio impor a sua sujeição às medidas excepcionais de prevenção da pandemia e de minimização dos riscos epidemiológicos.

 

3. SERVIÇOS ESSENCIAIS

Nos termos do art. 4º, 1 da Lei nº 7/2020, de 10 de Abril, durante o Estado de Emergência e no mês subsequente, não é permitida a suspensão do fornecimento dos serviços essenciais de fornecimento de água, de fornecimento de energia elétrica, de fornecimento de gás natural e de comunicações electrónicas (não se trata de uma enumeração exaustiva dos serviços essenciais, como é evidente).

Especificamente no que respeita à energia, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) aprovou o Regulamento nº 255-A/2020, de 17 de Março, estabelecendo medidas extraordinárias, como a fixação de prioridades de fornecimento a instalações de saúde, de protecção civil e de segurança pública, ou a minimização dos contactos presenciais, incluindo nos trabalhos urgentes de reparação e reposição do fornecimento.

A situação excepcional teve repercussões igualmente nos licenciamentos energéticos e no mercado da energia, subordinados ao regime do Decreto-Lei nº 172/2006, de 23 de Agosto, dadas as suspensões de prazos de deferimento tácito e de licenciamento, e dadas as possibilidades de prorrogação dos prazos dos próprios licenciamentos e das explorações de produção de energia, com suspensão de concursos e de apresentação de novos pedidos – além de que os contratos existentes se encontram agora expostos a considerações de força maior, de alteração das circunstâncias e de impossibilidade de cumprimento, embora deva sempre prevalecer o interesse do fornecimento permanente da energia (o conceito de “qualidade do serviço”).

 

4. EVENTOS PÚBLICOS

Uma das primeiras medidas ditadas pelo Estado de Emergência foi a proibição de eventos de massas em espaços confinados, e o encerramento dos estabelecimentos e instalações onde ocorram actividades culturais e artísticas, dado o perigo de contágio que representavam. Entretanto, o Decreto-Lei n.º 10‑I/2020, de 26 de Março, especificou e aprofundou essas medidas excepcionais para eventos e actividades agendados entre 28 de Fevereiro de 2020 e até 90 dias úteis após o final do Estado de Emergência, aplicando-o aos contratos respectivos que tivessem sido celebrados antes de 27 de Março de 2020.

A solução recomendada foi a do reagendamento, só se aconselhando o cancelamento, com restituição do preço dos ingressos, na impossibilidade de reagendamento – vedando-se qualquer penalização ou cobrança aos agentes artísticos por parte dos proprietários das instalações ou por parte de intermediários de venda de ingressos. (art. 11º do Dec.-Lei nº 10-I/2020, de 26 de Março, modificado pela Lei nº 7/2020, de 10 de Abril, e art. 11º-A do Dec.-Lei nº 10-I/2020, de 26 de Março, aditado pela Lei nº 7/2020, de 10 de Abril)

No futebol, a situação inédita de paralisação (quase-global) gerou uma série de problemas cuja solução a FIFA remeteu para as Federações nacionais – emitindo algumas recomendações, todavia, em matérias consideradas urgentes, como a vigência e renovação de acordos, e a celebração de novos acordos, durante a época desportiva em curso; o incumprimento, por impossibilidade objectiva, de acordos vigentes; e as contratações e transferências de jogadores: determinando que todas essas matérias devem ser subsumidas a regimes de “força maior”, podendo ser submetidas a apreciação por uma “task force” da FIFA.

Lisboa, 13 de Abril de 2020

Fernando Araújo

O CMT Advogados ocupa posição de destaque e de liderança na área de direito empresarial, com uma crescente presença e distinção nos principais centros de negócios do país, sendo reconhecido pelas principais publicações nacionais e internacionais de rankings de escritórios de advocacia, tais como Chambers & Partners, Legal 500, Análise Advocacia e Chambers & Partners como um dos melhores escritórios de advocacia do Sul em direito empresarial.

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